Henrique Rodrigues Marques
Doutorando e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, Brasil
henrique.rodriguesm@hotmail.com
Fecha de recepción: 9 de agosto de 2021
Fecha de publicación: 4 de agosto de 2022
Através do conceito de “constelação” enquanto categoria metodológica para estudos comparados em cinema, como proposta por Mariana Souto (2020), este artigo pretende localizar o cinema queer de ficção especulativa dentro de um panorama geral do cinema brasileiro contemporâneo e explorar os potenciais ativistas desses filmes. Partindo da análise do contexto atual do cinema brasileiro, buscaremos compreender como as constelações queer fracassam em reproduzir certas tendências do cinema político e desenham novas alternativas, estéticas e abordagens de temas sociais. Para os fins desse artigo, estabelecemos como recorte do que chamamos aqui de “produção mais recente” do cinema brasileiro contemporâneo a produção cinematográfica produzida entre os anos de 2013 e 2020.
Palavras-chave: cinema queer; cinema contemporâneo; cinema brasileiro; ativismo; ficção especulativa.
A través del concepto de “constelación” como categoría metodológica para los estudios comparados en cine, propuesto por Mariana Souto (2020), este artículo tiene como objetivo ubicar el cine de ficción especulativa queer dentro de un panorama general del cine brasileño contemporáneo y explorar el potencial activista de estas peliculas. A partir del análisis del contexto actual del cine brasileño, buscaremos comprender cómo las constelaciones queer no logran reproducir ciertas tendencias del cine político y diseñar nuevas alternativas, estéticas y enfoques de temas sociales. Para los propósitos de este artículo, establecimos como un recorte de lo que aquí llamamos la “producción más reciente” del cine brasileño contemporáneo, la producción cinematográfica producida entre los años 2013 y 2020.
Palabras claves: cine queer; cine contemporáneo; cine brasileño; activismo; ficción especulativa.
Through the concept of “constellation” as a methodological category for comparative studies in cinema, as proposed by Mariana Souto (2020), this article aims to locate queer speculative fiction cinema within a general panorama of contemporary Brazilian cinema and explore the activist potential of these films. Starting from the analysis of the current context of Brazilian cinema, we will seek to understand how queer constellations fail to reproduce certain trends in political cinema and create new alternatives, aesthetics and approaches to social themes. For the purposes of this article, we established as a frame of work of what we call here the “most recent production” of contemporary Brazilian cinema, the films produced between the years 2013 and 2020.
Keywords: queer cinema; contemporary cinema; brazilian cinema; activism; speculative fiction.
As primeiras inquietações de minha pesquisa de mestrado se manifestaram no ano de 2015, quando, ainda na graduação, eu estava em mobilidade acadêmica na cidade de Recife, Pernambuco. Naquele ano, pude comparecer ao Janela Internacional de Cinema do Recife, festival que em sua oitava edição exibia A seita (André Antônio), Mate-me por favor (Anita Rocha da Silveira) e Ralé (Helena Ignez). A maioria das sessões de filmes brasileiros contava com debates com os realizadores ao término da exibição. E em todos esses três filmes, repetiu-se uma tendência do público em demonstrar certa frustração em não enxergar nas obras um incisivo discurso político; um alinhamento explícito a demandas ativistas da atualidade brasileira. No debate de Mate-me por favor, por exemplo, Anita Rocha da Silveira foi questionada sobre a falta de uma abordagem mais frontal em relação a questão do feminicídio e sobre a ausência de uma declaração abertamente feminista na obra.
Afiche de Mate-me por favor, de Anita Rocha da Silveira (2015)
Partindo da experiência relatada acima, gostaria de abordar nesse artigo o modo como a recente produção do cinema queer de ficção especulativa (obras que lidam com os gêneros do horror, fantasia e ficção científica)1 fracassa em emular certas tendências do cinema brasileiro contemporâneo dito politizado, frustrando expectativas do público esclarecido que frequenta festivais. Apropriando-se da ideia de constelação fílmica, como proposta por Mariana Souto2 em diálogo direto com Walter Benjamin, construiremos uma análise panorâmica do cinema brasileiro dos últimos anos através do método comparativo. Segundo a autora, “constelar é uma forma de produzir chaves de leitura, de produzir um sentido a partir de sua visão em uma teia de relações.”3 Souto reconhece na constelação uma historicidade interna, já que as conexões que são construídas a partir da ligação dos pontos/estrelas/obras são fluídas. Constelações são arranjos que não são fixos e que estão diretamente relacionados ao momento histórico em que são feitos e, portanto, podem deixar de fazer sentido no futuro. “As constelações emergem de uma concepção relacional, que vê diálogos, tensões e afinidades entre as obras/estrelas, ainda que essa conversa não tenha sido por elas planejada. Afinal, não se trata de vínculo dado na natureza, preexistente – quem faz a ligação entre os pontos é o observador.”4 Sendo assim, a constelação fílmica constitui um instigante método para refletirmos sobre a relação entre o cinema contemporâneo, seu contexto político-social e o ativismo.
É inevitável discutir o atual cenário político brasileiro sem mencionar as manifestações das Jornadas de Julho de 2013, fenômeno que serve como um marco zero da polarização que se faz presente em todas as camadas do tecido social até os dias de hoje, influenciando até mesmo a área de artes e cultura. Na última década, popularizou-se entre os setores conservadores a prática de criar crises histéricas que mobilizam perseguições a certas produções artísticas, como foi visto na exposição Queermuseu em 2017 e a performance La Bête, do artista Wagner Schwartz, no Museu de Arte Moderna (MAM), durante o 35º Panorama de arte Brasileira que aconteceu no mesmo ano. Ambos os casos foram suscitados pelo pânico moral e falsas alegações de que as produções faziam apologia à pedofilia. Na mesma medida, esse contexto também motivou um maior engajamento político da classe artística brasileira.
Embora seja verdade que desde os anos 1960 o cinema brasileiro tenha sido marcado por um forte e constante teor político em parte de sua produção, é notável que, nos últimos anos, a politização do cinema brasileiro atingiu uma natureza distinta. A crise política instaurada em 2013 fez surgir a cultura do filme “urgente e necessário”, mobilizada tanto pelo anseio dos realizadores em se engajarem nas causas político-sociais que consternam o país, quanto por parte do público que demanda o consumo de obras que refletem os conflitos contemporâneos. Não por acaso, no mesmo VIII Janela Internacional de Cinema do Recife que recebeu de maneira conflituosa os filmes citados no início do artigo, o prêmio de Melhor Longa foi dedicado ao documentário Futuro junho (Maria Augusta Ramos), que aborda justamente a vida de quatro habitantes da cidade de São Paulo nas semanas que antecederam a Copa do Mundo de Futebol de 2014, refletindo diretamente o impacto social e político das manifestações de 2013, através de uma estética naturalista.
Afiche de Para onde voam as feiticeiras, de Eliane Caffé, Carla Caffé y Beto Amaral (2020)
Tal tendência do cinema brasileiro já foi apontada anteriormente no trabalho de Angela Prysthon5, André Antônio Barbosa6 e no ensaio “Alegorias do nada”, escrita por Victor Guimarães para a Revista Cinética em 2016. Através de uma análise da produção do coletivo Alumbramento, Guimarães levanta uma série de características frequentes nessa produção engajada do cinema brasileiro dos últimos anos. Ao falar sobre O último trago (Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti, 2016), Guimarães define o filme como “uma espécie de culto ecumênico da revolta, onde cabe virtualmente tudo (desde que faça coro a um genérico e atemporal espírito de luta).”7 Essa adesão a um genérico espírito de luta tem sido não apenas um norteador para realizadores brasileiros, mas uma demanda do próprio público do circuito de festivais e cinema dito de arte, que, além de desejar consumir conteúdos politizados, por vezes apresenta austera recusa por conteúdos que não se encaixam nessas expectativas.
Para refletir sobre essa produção política do cinema brasileiro destacada por Guimarães e Barbosa, precisamos refletir sobre o que faz um filme ser ativista. Um dos traços apontados por Guimarães ao problematizar essas produções, é a presença de uma postura teleológica e da sensação causada pelos filmes de “contemplar um conjunto de discursos diante dos quais o espectador não tem outra opção senão aquiescer automaticamente (por identificação prévia) ou ignorar por completo.”8 Sendo assim, acredito que as teorias do espectador emancipado de Jacques Rancière, assim como as propostas de cinema político de Ismail Xavier, oferecem o escopo ideal para essa discussão. Conciliando o trabalho de todos esses teóricos, proponho a divisão do cinema político-ativista brasileiro contemporâneo em dois grupos principais: a vertente pessimista e a vertente otimista.
Malgrado não configure uma referência direta, a divisão entre as duas tendências é inspirada no ensaio “O tempo do pessimismo”, escrito por Paulo Emílio Sales Gomes em 1957. No texto – uma breve análise da adaptação cinematográfica do clássico 1984 de George Orwell –, o crítico contrapõe o pessimismo do material original ao desejo do espectador do filme em encontrar na imagem alguma esperança, de procurar na trama “uma razão de esperar.”9 Dessa maneira, não nos interessa categorizar a produção aqui analisada em rótulos estanques, mas sim organizar as obras em constelações de acordo com a presença ou ausência da aspiração por um mundo melhor, uma revolução bem-sucedida ou mesmo uma utopia.
Na vertente pessimista, temos os filmes que acreditam que o engajamento é atingido através do confronto direto e explícito com a realidade. Nessa produção, os cineastas querem nos provocar com imagens que, da maneira mais realista possível, nos ultrajam ao exibir miséria, violência, sofrimento. O tipo de cinema que costuma receber críticas que colocam em tom elogioso máximas como “um soco no estômago”, “um retrato visceral”, “doloroso, mas necessário”. No regime estético em questão, o desconforto causado pelas imagens é justamente o motivo pelo qual o espectador considera que assistiu a um bom filme, detentor de um discurso politizado contundente.
Embora não seja necessariamente nova, nem um fenômeno exclusivamente brasileiro, essa vertente ganha outros contornos de registro da realidade na era da cultura digital. Uma característica que se popularizou bastante nos últimos anos em filmes alinhados a tal postura política, é a inclusão de registros amadores de imagens reais de violência, filmados em celular por testemunhas e distribuídos em grupos de redes sociais – Cabeça de nêgo (Déo Cardoso, 2020) e Para onde voam as feiticeiras (Eliane Caffé, Carla Caffé e Beto Amaral, 2020), para citar alguns exemplos recentes. Em um tempo em que esses conteúdos são consumidos diariamente pelos espectadores, o cinema que se propõe a apreender tal realidade precisa cada vez mais redefinir o limite das situações extremas que retrata, assim como encontrar outras maneiras de garantir a veracidade dos horrores que coloca em cena. Essa vertente de cinema político se aproxima da arte que Rancière10 vai denominar como a imagem intolerável, ao falar sobre os trabalhos artísticos que se apropriam de registros jornalísticos de guerras ou arquivos visuais dos campos de concentração do holocausto.
Afiche de Cabeça de nêgo, de Déo Cardoso (2020)
Um exemplo de filme brasileiro contemporâneo que se alinha a essa postura estética para construir seus discursos políticos, é o longa-metragem Sócrates (Alexandre Moratto, 2018), que retrata alguns dias na vida do personagem-título, um adolescente negro, gay e pobre que vive na periferia de Santos, litoral de São Paulo. Logo na abertura do filme, enquanto a tela ainda está escura, já podemos ouvir os gritos desesperados de Sócrates clamando por sua mãe. A imagem invade bruscamente o quadro e vemos o jovem, filmado por uma câmera bastante perto de seu rosto, tentando acordar a mãe, sem obter resultados. O filme se inicia com o garoto se tornando órfão e, desse momento em diante, assistimos o seu martírio ao passar por diversos tipos de violência, sempre com essa câmera opressiva, bastante perto de seu corpo em registro documental. Agressão física, homofobia, problemas com alcoolismo e desamparo familiar são alguns dos problemas reais que o filme nos exibe. Até mesmo um breve romance que Sócrates vive com outro rapaz se torna rapidamente fonte de novos sofrimentos. Em um determinado momento, assistimos o garoto pegar um prato de comida encontrado no lixo e comer. Como é fundamental ressaltar o realismo do ato (a sensação para o espectador de que ator comeu do lixo de verdade) para que se obtenha o impacto desejado, do momento em que ocorre a descoberta dos restos de marmita até o jovem começar a comer é registrado em um único plano, sem cortes e, quando o corte se manifesta, a cena migra para um plano mais fechado no rosto de Sócrates, para que vejamos melhor, com mais riquezas de detalhes a cruel realidade que o cineasta quer que vejamos.
Esse tipo de cinema pretende conscientizar o espectador através de uma representação fidedigna dos problemas sociais que ambiciona combater. Nós sabemos que a miséria existe e, no Brasil, não é incomum que pessoas em situação de rua precisem procurar nas lixeiras algum alimento. Essa asserção, mais do que um senso comum, é bastante tautológica. Porém, saber não é o bastante. É necessário ver, ser confrontado por essa realidade, mesmo que seja na segurança de um cinema, uma galeria, sua sala de estar. Como define Rancière, a proposta da imagem intolerável pressupõe que nela existem características que, incontestavelmente, geram no espectador indignação e dor. Realidades duras demais, reais demais para atuarem em um regime de visibilidade sem gerar algum impacto. E aqui, mais uma vez, opera a suposta equação onde ver para assim conhecer e depois agir obedece a uma lógica de causa e efeito; ao ser apresentado a imagens tão intoleráveis, o espectador não terá outra escolha a não ser se conscientizar. No entanto, como aponta o autor ao analisar um trabalho fotográfico que utiliza a imagem intolerável, o uso militante dessas imagens gera uma duplicidade, pois:
Esperava-se que a imagem da criança morta dilacerasse a imagem da felicidade factícia da vida americana; esperava-se que ela abrisse os olhos daqueles que gozavam tal felicidade com base no intolerável daquela realidade e de sua própria cumplicidade, para engajá-los na luta. Mas a produção desse efeito permanecia indecidível. A visão da criança morta no belo apartamento de paredes claras e grandes dimensões por certo é difícil de suportar. Mas não há razão particular para que ela torne os que a veem conscientes da realidade do imperialismo e desejosos de opor-se a ele. A reação comum a tais imagens é fechar os olhos ou desviar o olhar. Ou então incriminar os horrores da guerra e a loucura assassina dos homens. Para que a imagem produza efeito político, o espectador deve estar já convencido de que aquilo que ela mostra é o imperialismo americano, e não a loucura dos homens em geral. Deve também estar convencido de que ele mesmo é culpado de compartilhar a prosperidade baseada na exploração imperialista do mundo. Deve também sentir-se culpado de estar lá e nada fazer, a olhar aquelas imagens de dor e morte em vez de lutar contra as potências responsáveis por ela. Em suma, deve sentir-se já culpado de olhar a imagem que deve provocar seu sentimento de culpa.11
Esse pensamento de Rancière se alinha bastante ao que Henry Jenkins propõe ao defender que o cinéfilo que consome esse tipo de cinema talvez seja apenas um consumidor de sofrimento dos outros ao invés de uma pessoa politicamente engajada.12 A questão levantada pelo autor ao defender que o efeito político só pode existir quando o espectador já demonstrar predisposição a apreensão desse sentido, pode ser bem observada no filme The viewing booth (Ra’anan Alexandrowicz, 2020). O documentário estabelece um dispositivo criado pelo realizador e aplicado na universidade em que leciona atualmente, nos Estados Unidos. O experimento consiste em colocar uma pessoa dentro de uma cabine e oferecer a ela um acervo de quarenta vídeos, todos registros amadores do conflito na Palestina, sendo metade dos vídeos pró-Israel e metade contra. O espectador escolhe o vídeo que quer assistir e, enquanto olha as imagens, ele deve narrar o que sente e pensa sobre o que está representado na tela. Mais uma vez, a estética dos arquivos documentais filmados amadoramente por celulares e divulgados em baixa resolução de imagem, é colocada como a epítome maior da realidade. Embora tenha contado com a participação de diversos voluntários, o realizador centra o documentário exclusivamente na experiência de Maia, uma garota judia que, além de apoiar Israel, possui relações afetivas com o país. Enquanto assiste as imagens que pretendem denunciar os abusos e violências do exército israelense, Maia questiona a autenticidade das imagens, considera a possibilidade que existe uma razão para a ação dos soldados que não foi registrada em vídeo, ou ainda que as vítimas talvez estejam exagerando ou mesmo fingindo suas reações. O motivo do fascínio e espanto de Alexandrowicz é perceber que, as imagens que ele entende como detentoras de uma realidade intolerável e capaz de comover qualquer pessoa, não atingem ou comovem uma espectadora já predisposta a desconfiar daquele conteúdo. Como declara Maia em determinado momento, ela está assistindo enquanto procura por mentiras. O principal mérito do documentário, para o desgosto de Alexandrowicz, um cineasta que acredita no potencial da imagem em modificar visões sobre determinado assunto, é demonstrar como a espectadora emancipada traduz as imagens que assiste através do que ela já conhecia como verdade. Ela resistia ao conteúdo das imagens e encarava os vídeos como obras de ficção por não apresentarem o convencimento prévio descrito por Rancière. “As imagens da arte não fornecem armas de combate. Contribuem para desenhar configurações novas do visível, do dizível e do pensável e, por isso mesmo, uma paisagem nova do possível. Mas o fazem com a condição de não antecipar seu sentido e seu efeito.”13
No outro polo desse cinema ativista, temos a vertente otimista, mais alinhada a postura que Guimarães critica em seu texto. Para esses filmes, não é o bastante expor uma realidade ao seu público; é necessário instigar o desejo de mudança, um movimento de luta, a conscientização que gere ação direta. E, para atingir tal efeito, é fundamental que os filmes representem a superação das injustiças, a vitória dos oprimidos, a suplantação dos regimes distópicos. Para reforçar o “genérico e atemporal espírito de luta”, essas obras precisam deixar claro que a politização gera resultados. Mesmo quando tais narrativas não culminam em um final feliz, elas precisam permitir momentos catárticos. Se, em 1993, Xavier criticava o uso de catarse em filmes políticos14, no cinema brasileiro contemporâneo a ferramenta se converteu em um alicerce do cinema ativista. Nas palavras de Guimarães, ao resumir um dos filmes analisados em seu ensaio, “o que está em jogo aqui é uma catarse, uma sorte de descarga emocional que ao mesmo tempo libera a personagem de suas amarras e nos libera do conflito ensejado pelo filme.”15
Na produção brasileira mais recente, não faltam exemplos de momentos politicamente catárticos. O ato de rebeldia de Val ao entrar na piscina dos patrões em Que horas ela volta? (Anna Muylaert, 2015); Clara enfurecidamente jogando as madeiras cobertas de cupins na mesa dos empresários que querem comprar seu apartamento, enquanto seu sobrinho faz o registro em vídeo do ato de resistência, em Aquarius (Kleber Mendonça Filho, 2016); o monólogo da conscientização de classe em Arábia (João Dumans e Affonso Uchôa, 2017); a fuga de carro em Temporada (André Novais Oliveira, 2018).
Não por acaso, esses momentos costumam, como nos lembra Guimarães, arrancar ruidosos aplausos do público, muitas vezes em cena aberta. Embora os espectadores que consomem esse tipo de filme constantemente desprezem o cinema mainstream, do entretenimento das produções Globo Filmes aos blockbusters do universo Marvel, o cinema político brasileiro de vertente otimista se aproxima bastante dessas obras. Em um momento político bastante delicado, no qual muitas pessoas alinhadas aos pensamentos progressistas se sentem frustradas e derrotadas, esse cinema cria um tipo de ativismo voltado para a criação de esperança que, em muitas medidas, contempla o que Richard Dyer vai definir como o utopismo do entretenimento:
Entretenimento oferece a imagem de “algo melhor” como escape, ou algo que nós queremos profundamente e não encontramos na vida cotidiana. Alternativas, esperanças, desejos – essas sãos as características da utopia, um senso de que as coisas podem ser melhores, que algo diferente pode ser imaginado e realizado.16 [nossa tradução]17
Sendo assim, é um cinema mais próximo da pedagogia das fórmulas do cinema popular criticada por Xavier, do que da transgressão do Cinema Novo, do desbunde superoitista ou da anarquia do Cinema Marginal, as principais frentes do cinema político e vanguardista brasileiro na era moderna. Ou seja, mesmo essa produção que é vista como uma oposição ao cinema de entretenimento (a alteridade, o “Outro” inferior ao cinema de arte), opera por dinâmicas bastante similares, cumprindo o objetivo de oferecer ao público uma experiência que ele deseja ter. Enquanto a vertente pessimista aposta no desconforto e na consternação do espectador, a vertente otimista vai oferecer a fantasia da revolução. Um dos elementos mais notáveis desse cinema é a inclusão, extremamente disseminada desde 2013, de axiomas e vernáculos do ativismo do “mundo real” nos universos narrativos. Citações que, variando nos graus de evidência e transparência, declaram que não vai ter golpe, que não vai ter copa, que já vivemos em um golpe, Fora Temer, Lula Livre, Marielle Franco, #elenão. Essas breves referências seguem uma lógica que remete ao uso de easter eggs dos filmes da cultura de massa. Bastante popularizado nas animações da Pixar e nos filmes de super-heróis da Marvel, um easter egg é, como define Bart Beaty, um elemento semi-escondido para ser notado somente por alguns espectadores. Segundo o autor, o easter egg tem como objetivo ativar a imaginação do espectador capaz de traduzir esses códigos e recompensar seu conhecimento prévio sobre a trama.18
Embora em alguns casos essas referências ativistas sejam extremamente literais e explícitas (em um dos filmes, o primeiro plano é composto por um close up da personagem que, olhando diretamente para câmera, inicia seu discurso com a frase: primeiramente, fora Temer), em muitos elas são apresentadas de maneira mais sutil, como manda o padrão do easter egg. Casa de antiguidades (João Paulo Miranda Maria, 2020), um exemplo atual, coloca nas pichações em paredes dos cenários referências ao governo Bolsonaro, como a frase “deus assima de todos” (apresentada com a grafia incorreta, aumentando no espectador intelectualizado seu senso de alteridade) e o número 17. Em sua análise elogiosa de Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019), Patrícia Mourão de Andrade destaca as menções aos nomes Marielle e Mariza na cena do cortejo fúnebre.19 Embora sejam mencionados só os prenomes, Andrade consegue traduzir os easter eggs e captar que se trata de tributos a Marielle Franco e Mariza Lula da Silva, ícones de luta para esquerda que morreram recentemente. Enquanto um espectador mais casual talvez não associe o nome “Mariza” à falecida esposa do ex-presidente Lula, o espectador alinhado aos debates políticos do filme faz essa leitura e recebe sua recompensa por reconhecer os elementos textuais prévios que influenciam o universo fílmico.
Bacurau talvez seja a epítome das ambições da vertente otimista e sua distribuição de catarses. Apropriando-se assumidamente de uma série de fórmulas de gênero, com referências que vão do western ao cinema de John Carpenter, o filme conta a história de uma pequena cidade no interior de Pernambuco que vive pacificamente – como nota a placa na beira da estrada que declara “Bacurau 17 km – se for, vá na paz” –, e que um dia simplesmente desaparece do mapa. Instalado o mistério, a trama vai ganhando contornos com a chegada de estranhos forasteiros do Sul do país e a ocorrência de mortes inesperadas fazendo com que, rapidamente, o povo perceba que algo de errado está acontecendo e se organize em tática de defesa. Ao decorrer da narrativa, descobrimos que tudo é parte de um plano de um grupo de gringos que, sem motivo aparente, veio ao Brasil caçar a população de Bacurau.
Narrativamente, o filme se utiliza de todas as estruturas criticadas por Ismail Xavier em 1993.20 Elementos de gêneros populares, maniqueísmo no antagonismo entre Bem e Mal, jornada do herói, sentimentalismo exacerbado e um excesso de catarses. Não que tais características sejam necessariamente ruins, mas são pontos que estreitam a relação entre o cinema político recente que se julga como alta cultura e as fórmulas da baixa cultura. Ainda em sua análise, Andrade se esforça em reforçar os aspectos de um “espírito de luta” presente em Bacurau: “a valentia e a disposição ao confronto da gente de Bacurau”, “temperamento guerreiro daquele povo”, “o guardião e fornecedor das armas para o enfrentamento.”21 Essa ênfase imensa ao desejo de revolução inspirado pelo filme era bastante palpável em suas exibições. Em São Paulo, assisti ao filme no cinema em duas ocasiões que compartilhavam um certo delírio eufórico por parte do público, que aplaudia e comemorava em cena aberta, assim como proclamava palavras de ordem. Uma experiência não tão distante de ver um filme da franquia Vingadores em sua noite de estreia, acompanhado de diversos fãs do gênero.
Fotograma de Os últimos romãnticos do mundo, de Henrique Arruda (2020)
Beaty define como fan service a tendência que criadores culturais vêm apresentando recentemente de “presentear os fãs com elementos narrativos que eles anseiam por ver.”22 Prática bastante recorrente na cultura pop, comum de se encontrar em filmes da Marvel, seriados televisivos e mangás, o fan service oferece uma forte experiência catártica, na medida que concretiza em cena fantasias feitas sob medidas para os fãs do produto em questão. Sendo assim, acredito que fan service é outro termo que pode ser facilmente aplicado ao cinema político brasileiro de vertente otimista. Em Bacurau, o ponto de transição da narrativa, a cena que abre o terceiro ato, é o assassinato de uma criança, símbolo máximo do apelo emocional para o pagamento da catarse. É após essa morte que a cidade é propriamente atacada e o público pode assistir o povo guerreiro de Bacurau reivindicar sua vingança. E, como toda narrativa de vingança, o deleite catártico não se contenta em apenas matar, prática muito próxima da legítima defesa; é necessário que os inimigos sofram. Nas longas sequências em que os habitantes de Bacurau se vingam dos gringos através da violência e tortura, o espectador engajado em temas políticos experiencia um tipo de prazer aos moldes do experienciado por um fã de quadrinhos ao assistir Thor, Capitão América e Homem de Ferro reunidos em uma só cena. Através de suas experiências catárticas de fantasias revolucionárias, Bacurau oferece ao seu público um escapismo utópico como o descrito por Dyer ao teorizar o entretenimento. No texto de Andrade, ela constantemente coloca a cidade de Bacurau no espaço do “algo melhor” postulado por Dyer como escape utópico elementar do entretenimento.
Jenkins propõe uma polarização entre os cinéfilos e os fãs na medida em que eles se relacionam de maneiras distintas com ativismo e política nos produtos que consomem, já que o pesquisador reconhece nos fãs uma tendência maior a adesão ativista através dos seus objetos de adoração.23 No entanto, analisando o cenário do consumo de cinema político no Brasil atualmente, acredito que o próprio público cinéfilo dessa produção é, em algumas medidas, um tipo de fandom. O modo como esses filmes utilizam slogans de luta, iconografias de revoluções do passado, vernáculos ativistas com alinhamentos explícitos e celebração de líderes políticos, criam não apenas o culto ecumênico da revolta descrito por Guimarães, mas transformam a história política em um universo expandido, no qual as referências são apresentadas como maneiras de inferir pertencimento ao espectador politicamente engajado dentro da própria narrativa. Não à toa, Andrade propõe a transformação de Bacurau em verbo de ação, definindo bacuralizar em termos caros a cultura de fandoms, descrevendo, basicamente, a prática de escrever fanfics: antropofagizar as histórias de violência, elaborá-las estética, política e psiquicamente, reencená-las com outros fins e outros meios, fabulá-las com outros desfechos, para, então, devolvê-las ao mundo.24 Além da tentativa de fazer a experiência do filme passar do olhar para o conhecer e agir, a descrição de Andrade tenta traduzir de maneira literal o que a cidade fictícia de Bacurau apresenta como fabulação; um movimento idêntico ao que fãs dos gêneros de ficção especulativa fazem com Na’vi, Panem, Nárnia ou Hogwarts.
Durante algum tempo, suspeitei que o desconforto que a produção queer mais recente causava era ocasionada pelo uso da ficção especulativa. No entanto, alguns filmes que se apropriam de elementos do cinema de gênero obtiveram ampla celebração de crítica e público, desde que eles apresentassem um incisivo discurso político e um alinhamento claro a vertente pessimista ou a otimista. Filmes como Brasil S/A (Marcelo Pedroso, 2014), Branco sai, preto fica (Adirley Queirós, 2014), No coração do mundo (Gabriel Martins e Maurílio Martins, 2019), O clube dos canibais (Guto Parente, 2018) e o próprio Bacurau, foram bastante bem recebidos por crítica e público, de uma maneira que não acontece com os filmes queer de ficção especulativa.
Se a questão da rejeição por esses filmes não é proveniente do uso de gêneros da ficção especulativa, suponho que ela seja fruto da falta de adesão das constelações queer a algumas dessas propostas. Recusando-se na mesma medida a construção de imagens intoleráveis e a oferta de catarses, essa produção acaba encarada como oca, boba e despolitizada. Em sua tese, André Antônio Barbosa defende, de maneira positiva, a despolitização dos filmes frívolos. No entanto, apesar da legitimidade de seu argumento, o seu próprio trabalho em reivindicar o estudo de tais filmes e propor que “a negatividade voluptuosa e inútil desses filmes pode ser na realidade uma positividade produtiva”25 já comprova o potencial político desse cinema. Ao mesmo tempo em que argumenta sobre a despolitização latente nos filmes, Barbosa levanta questões que indicam movimentos de obstinação e oposição que são claramente politizados.
Embora reconheça as razões de discursos políticos se alinharem as duas vertentes que busquei teorizar até aqui, gostaria de defender que a oposição a ambas não necessariamente precisa representar um gesto despolitizado ou ainda apolítico. O ativismo proposto por esses filmes é de outra ordem, uma alternativa política próxima ao que Donna Haraway defende ao escrever “The Camille Stories”26. Ao invés da busca por revoluções que partem da premissa de que é possível recomeçar do zero, o cinema queer brasileiro, ao se apropriar de textualidades da ficção especulativa, reconhece a inevitabilidade de herdar os danos já causados ao mundo, um gesto que pode ser encarado como derrotista ou niilista, como se a constatação de que futuros redentores não são mais uma possibilidade fosse automaticamente um posicionamento despolitizado e resignado. Contudo, tal reconhecimento pode ser em si mesmo a base para constituição de outras premissas. Em oposição ao pensamento da revolução como o caminho de acesso ao futuro utópico (causa e efeito), esses filmes nos inspiram a buscar alternativas que não exigem a esterilização e superação dos danos, mas sim a construção de futuros possíveis a partir de escombros, de falhas, das coisas que restaram. “Bloqueando as restrições de utopias, a ficção especulativa mantém a política viva.”27
Fotograma de A seita, de André Antônio (2015)
Como postulado por Teresa de Lauretis,28 percebo em todos esses filmes uma deliberada rejeição pela narratividade. Mesmo nos filmes mais tradicionais em termos de estruturas de roteiro, é notável caminhos de fragmentação da narrativa, momentos mortos, cenas que não contribuem para uma trama central. Em Mate-me por favor, provavelmente o mais tradicional dessa constelação, é feita uma digressão que consiste em um número musical, onde um grupo de alunos dança uma coreografia de funk sem que isso tenha alguma relação de causa e efeito com o todo do filme. Já em As boas maneiras, a ruptura que divide o filme em dois é um elemento que queerifica a sua narratividade. Não por acaso, essa quebra é um dos pontos mais criticados por crítica e público, que consideram que a segunda parte não se relaciona tão bem com a primeira.
Para além disso, esses filmes tendem a negar ao espectador a recompensa de experienciar catarse. Em A seita, os planos do grupo terrorista de resistência são frustrados antes mesmo de serem colocados em prática e o protagonista precisa voltar para as Colônias sem resoluções; Batguano (Tavinho Teixeira, 2014) se encerra sem a descoberta da cura para o vírus ou qualquer esperança de saída do regime distópico; em Mate-me por favor, nunca descobrimos quem é o assassino e o filme se encerra de maneira alegórica, com uma cena que não oferece nenhum tipo de encerramento; As boas maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017) elege como última cena o momento que antecede o clímax, não permitindo que o público descubra se Joel e Clara irão se salvar da fúria da multidão; em um caminho similar, A Besta Pop (Fillipe Rodrigues, Artur Tadaiesky e Rafael B. Silva, 2018) se encerra com a chegada da polícia na festa, após ter passado todo o ato final construindo a tensão para o momento da batida; Divino Amor (Gabriel Mascaro, 2019), apesar de terminar com a insinuação de uma revolução, não nos permite sequer vislumbrar essa mudança. Sendo assim, esses filmes trabalham contra “a pressão de toda narrativa por encerramento e relação de sentido.”29 E é justamente na negação de catarse (ou de encerramento e geração de sentidos) que esses filmes atingem o seu potencial ativista. Como especula Guimarães,
Talvez o gesto mais urgente de uma dramaturgia política hoje consista em neutralizar radicalmente qualquer forma de catarse; em desativar integralmente toda possibilidade de identificação do espectador; no limite, em dinamitar de tal forma o mecanismo imaginário da redenção que a obra só possa fabricar um verdadeiro abismo entre o espectador e a tela (ou o palco, ou a rua), cujo efeito mais imediato seja a impossibilidade absoluta do aplauso ruidoso ao final da sessão.30
Malgrado a ausência de explosões catárticas e o desprezo por sonhos de redenção, o cinema queer brasileiro opera outras possibilidades de ativismo em suas imagens. Mesmo que sejam por breves momentos, essa constelação oferece lampejos de fabulosas fabulações que carregam potenciais políticos, ainda que se trate de uma outra política, uma alternativa aos regimes hegemônicos que dominam os vernáculos da mobilização engajada. Sendo assim, gostaria de abordar alguns desses momentos.
Santa porque avalanche (Paulo Victor Soares, 2016) conta a história de um grupo de amigues que decidem participar do concurso da garota molhada. No momento do desfile, em que a pedagogia catártica ditaria que deveria ser o grande momento de glória das protagonistas, essas quatro figuras bichas ocupam o quadro enquanto um forte jato de água destrói suas maquiagens, adornos e roupas, ao som de música eletrônica e uma apresentadora que clama fanaticamente “eu quero é água, joga água nelas, joga, porra!”. Em determinado momento, a música é interrompida repentinamente e passamos a ouvir apenas o barulho da mangueira que ininterruptamente molha as personagens. Por pouco mais de um minuto, sem cortes, assistimos essas quatro bichas posando, servindo carão e sustentando o close enquanto são vigorosamente gongadas. Essa cena me remete, enquanto espectador queer, a leitura que Jack Halberstam faz do filme Little Miss Sunshine (Valerie Faris e Jonathan Dayton, 2006), narrativa que também lida com um concurso de beleza. Ao descrever a protagonista Olive, Halberstam define que ela está “destinada a fracassar, fracassar espetacularmente.”31 As bichas de Santa porque avalanche também parecem fadadas a não conquistar o título do concurso da garota molhada, tendo em vista as roupas estranhas com que se apresentam. Mas, assim como acontece com Olive, é a celebração do fracasso, o escárnio do concurso e sua obsessão com vitoriosos, a recusa em ceder aos jatos d’água e a decisão de se manter fabulosa mesmo em momentos difíceis que revelam o gozo queer do filme. Através do fracasso, elas encontram não apenas um tipo de prazer, mas uma maneira desbundada de protestar contra o próprio regime do concurso. A cena se encerra ainda no começo do filme, na parte final do primeiro terço de sua duração, mas, pelo resto do curta, as quatro amigues não se arrumam novamente, ficando com suas roupas destruídas pelo resto da narrativa; apropriando-se orgulhosamente do fracasso conquistado.
Figura 1: O concurso da garota molhada em Santa porque avalanche. Paulo Victor Soares, 2016.
Após o concurso, o grupo caminha por uma rua escura, até que, bruscamente, a tela fica completamente preta por muitos segundos. Aos poucos, essa escuridão revela uma figura, creditada ao final do filme como deusa Freya, deusa nórdica do sexo, da beleza e da morte. Como coloca Halberstam, “o fracasso apresenta uma oportunidade, não o fim da linha; na verdadeira moda extravagante, o artista queer trabalha com o fracasso em vez de contra ele e habita a escuridão. De fato, a escuridão se torna parte crucial da estética queer.”32 Sendo assim, é bastante simbólico que essas quatro bichas, após fracassarem em um concurso de beleza, em meio a escuridão, encontram justamente uma figura mística que contempla sexualidade, beleza e morte, uma escolha que dificilmente foi arbitrária. Abraçando o fracasso, as garotas molhadas transformam a escuridão em estética. Embora o filme não coloque isso de maneira explícita ou literal, assumindo diretamente o vernáculo do ato de resistência, existe algo de empoderador, de orgulhoso em assistir essas personagens se recusando a ceder, a se deixarem intimidar, a permitirem que o fracasso seja um fim. Utilizando o artifício, a ficção especulativa e uma estética frívola, o grande mérito do curta é transformar um momento de violência não em fonte de tristeza, humilhação e dor, mas de comunhão entre bichas, deboche, pinta e festa.
Em Os últimos românticos do mundo (Henrique Arruda, 2020) o apocalipse não é uma hipótese, é uma certeza. Desde o início do filme, já sabemos que acompanhamos as últimas horas na Terra, em 2050, antes que uma nuvem rosa destrua o planeta. É nesse contexto que um jovem casal decide fugir em um carro, juntos para o fim do mundo. Misto de road movie com ficção científica, o curta traz um repertório bastante vastos de referências a cultura pop que vão de Xuxa a Bonnie Tyler, passando pelos letreiros clássicos da Sessão da Tarde dos anos 1990 e Thelma & Louise (Ridley Scott, 1991). Embora o filme seja permeado por uma forte melancolia, seu tom nunca se torna niilista. Partindo de sua premissa fatalista, Os últimos românticos do mundo procura, através das brechas, encontrar maneiras de celebrar o fim do mundo.
Em uma cena, um dos protagonistas conversa com uma amiga sobre o apocalipse que se aproxima. Com uma entonação preocupada, ele a pergunta como ela acredita que vai ser. De maneira descontraída e desbocada, ela então responde que será “trombeta no cu e gritaria”, subvertendo ainda mais a já subversiva frase “dedo no cu e gritaria” e, entre risos e gargalhadas, passa a especular sobre a chegada de cavaleiros do apocalipse suados e sem camisa para decretar o fim e jogar bombas no planeta. Não obstante a descrição apocalíptica, a amiga também encontra espaço para imaginar o surgimento de uma geração toda composta por sapatões, travas e trans que não sangram, mas jorram glitter. Nesses momentos finais, o deboche e o ato de fabular futuros queer servindo a ambas como um tipo de acalento.
Ao longo da viagem, o casal principal explora diversos prazeres. Dublam canções, dançam, nadam, transam, se acariciam. Negando a busca por redenções e salvações utópicas, o filme estabelece de antemão a morte do planeta como uma inevitabilidade. Nesse contexto, a possibilidade de ativismo é justamente a formação de comunidade (ainda que uma comunidade de dois), de forjar parentesco (a criativa subversão do pedido de casamento que acontece horas antes do mundo acabar), de estar um com o outro, germinando o apoio e o afeto compartilhado no momento do fim.
Figura 2: Momentos afetivos em Os últimos românticos do mundo. Henrique Arruda, 2020.
Por fim, gostaria de resgatar o filme Mate-me por favor, refletindo sobre a provocação de ausência de uma discussão abertamente feminista no filme, como mencionado no debate que descrevi no início desse texto. Para tanto, proponho uma análise da abertura do filme. Logo em seu primeiro plano, o longa nos apresenta o rosto de uma jovem mulher, em close up, em uma paisagem noturna, com as luzes da cidade ao fundo. Embora seja a primeira personagem a aparecer em cena, essa mulher não é a protagonista. Na realidade, ela irá morrer antes que o filme apresente seu título. Utilizando uma fórmula clássica do cinema de horror, principalmente em seu subgênero slasher, Mate-me por favor se inicia com uma cena que não está diretamente associada com a trama e os personagens centrais. Bia, a protagonista, sequer conhece essa garota. A abertura serve para nos inserir no mistério do filme, criar uma atmosfera macabra e nos revelar, antes mesmo que os demais personagens saibam, que existe um assassino a solta, um perigo ameaçando a vida naquele espaço.
Primeiramente, ela olha para o além do quadro, com um olhar distraído. Até que de repente ela encara a câmera e, mantendo seu olhar intenso, segue nos fitando por muitos segundos. Em um determinado momento, uma lágrima escorre de seu olho. Essa mulher está triste. Nos planos seguintes, acompanhamos a jovem, solitária, passeando por diferentes cenários onde outros jovens se divertem e músicas animadas tocam em volume alto. Mas a jovem segue triste e solitária. Em um plano mais aberto, com a personagem sentada no chão, descobrimos que ela está vestindo roupas curtas, que exibem as suas pernas, seus braços, seu colo. Quando finalmente ouvimos essa mulher falar, ela na verdade não fala; emite grunhidos, onomatopeias irreconhecíveis para os carros que passam. Essa jovem está triste, solitária, com roupas curtas e bêbada. Em uma rua escura, ela caminha sozinha enquanto bebe uma última latinha de cerveja. Ouvimos apenas os barulhos que seus saltos fazem na calçada e, eventualmente, o som de um carro que passa em alta velocidade ao seu redor. A jovem para e olha para os lados. O contraplano nos revela, em imagens panorâmicas a imensidão da cidade na escuridão e o silêncio das ruas vazias. Em um plano onde a única coisa que enxergamos são as luzes nos prédios, um lento fade out vai suprimindo a iluminação. De costas, vemos a mulher caminhando por um espaço que parece ser um terreno baldio. Triste, solitária, de roupas curtas, bêbada, na escuridão da noite, em um lugar perigoso. A música de tensão preconiza que algo de ruim está prestes a acontecer. A jovem, mesmo sem ouvir a música, percebe o mesmo. Apressa o passo de maneira arquejante. Começa a correr. É difícil de enxergar sua silhueta na escuridão. Mas ouvimos a trilha de tensão, seus passos rápidos, sua respiração ofegante. Ela corre e, ao chegar a um ponto mais bem iluminado, ela cai. A câmera corta para um outro close up de rosto, em recorte praticamente idêntico ao plano que abriu o filme. Mas, dessa vez, ela está no chão, de olhos fechados. Ela desperta e novamente olha em direção a câmera. Porém, dessa vez ela não chora. Ela grita. Ela grita diversas vezes, gritos desesperados, gritos prolongados que cortam o silêncio da noite. A imagem escurece. Ainda ouvimos seus gritos quando, em letras brancas e garrafais, o letreiro nos diz: mate-me por favor.
Figura 3: Frames da abertura de Mate-me por favor. Anita Rocha da Silveira, 2015.
Desde a primeira vez em que assisti ao filme, na sessão em que ele foi questionado por seu fracasso em produzir um discurso feminista, essa abertura me causou grande impacto. Não apenas por sua beleza plástica e mise-en-scène extremamente atmosférica que constroem imagens hipnotizantes, mas por conseguir dizer tanta coisa sem que uma palavra seja proferida. Um fã de horror reconhece facilmente a estrutura utilizada nessa sequência. Sua fórmula já se encontra tão consagrada no imaginário compartilhado do gênero que no filme Scream (Wes Craven, 1996), um slasher essencialmente metalinguístico, existe um jogo de expectativas na escolha de colocar, logo em sua abertura a atriz Drew Barrymore que, na ocasião de lançamento, era o nome mais famoso do projeto. O público sabe que, tradicionalmente, a personagem apresentada na primeira cena de um slasher morre para nos contextualizar na diegese. Por essa razão, um espectador versado nos códigos de horror, identifica rapidamente o risco que a jovem solitária de Mate-me por favor corre naquela noite.
Não obstante a fórmula de gênero, Anita Rocha da Silveira nos oferece outras pistas de leitura ao longo da sequência inicial. Na construção visual da personagem, ela nos fornece todas as informações que descrevi anteriormente. Vemos em cena uma mulher triste, solitária, bêbada, com roupas curtas. Ela concentra, basicamente, todas as características usadas culturalmente para deslegitimar mulheres vítimas de abusos sexuais. No recente julgamento do caso André de Camargo Aranha, o advogado responsável pela defesa do agressor exibiu imagens da vítima, Mariana Ferrer, em roupas sensuais e trajes de praia postadas em suas redes sociais. De maneira violenta, o advogado humilha Mariana enquanto traça relações entre suas roupas e seu comportamento com o estupro que ela sofreu. Sendo assim, não é difícil imaginar que a personagem apresentada na abertura de Mate-me por favor seria também vítima de discursos que associam sua conduta com o seu assassinato. Ao estar de roupas curtas, bêbada e andando sozinha pela noite, a jovem estava pedindo para que algo acontecesse, estava procurando o perigo e encontrou o que mereceu. De maneira engenhosa, Silveira se apropria de códigos do gênero slasher para representar visualmente não apenas a violência do assassinato, mas também do tipo de julgamento moral ao qual as vítimas são submetidas. Se a mesma abertura apresentasse uma garota sem maquiagem, vestida de maneira comportada e sóbria, a mensagem transmitida pelo discurso fílmico seria outra. Logo, existe um desejo deliberado em colocar em cena essas múltiplas violências; provocar o público ao se deparar com o assassinato de uma vítima que não corresponde a uma idealização de como uma vítima deve parecer para gerar compaixão.
Na época de seu lançamento, Mariana Ferrer não havia sido humilhada pelo advogado que defendia seu estuprador. Mas, ainda assim, essa cena acionou em mim outros códigos externos a narrativa. Logo em meu primeiro contato com a obra, essa abertura me remeteu a uma imagem de Kathleen Hanna, vocalista da banda punk Bikini Kill, em um show beneficente pela causa do aborto seguro em 1993. No registro, que se tornou um ícone da cultura pop, Hanna veste um vestido vermelho, feito por ela mesma, com os dizeres: KILL ME (ME MATE). Ainda adolescente, quando consumia bastante música rock dos anos 1990, essa imagem me marcou de maneiras muito similares a abertura de Mate-me por favor. Em entrevista cedida para o portal The Cut em 2013, Hanna explica que sua ideia para o vestido partiu da reflexão sobre o que exatamente constitui “estar pedindo por um assédio”. “Se você usar um vestido que diz ‘me mate’ você está pedindo por isso?”, questiona ela.33 A abertura do filme de Silveira ecoa essa mesma reflexão. Uma garota triste, solitária, bêbada, com roupas curtas que anda sozinha em uma rua escura e perigosa, está pedindo para ser violentada? Para além do alinhamento discursivo, o filme constrói uma imagem igualmente potente. Enquanto Hanna fez um show usando um vestido que em letras grandes e brancas nos diz ME MATE e essa imagem segue eternizada em fotografias até a atualidade, o filme coloca as palavras MATE-ME POR FAVOR, também em letras grandes e brancas, logo após o plano do rosto de uma mulher gritando em desespero e enquanto ainda podemos ouvir seus gritos. Além de ser o título do filme, a frase, dentro dessa decupagem, reveste-se do sentido alegórico de representar o “pedido” da mulher que grita antes de ser assassinada.
Figura 4: Kathleen Hanna e seu vestido com os dizeres KILL ME
Na mesma entrevista, Hanna relata que o seu feminismo e de sua banda eram frequentemente questionados. Enquanto mulheres diziam que elas faziam “feminismo errado”, jornalistas diziam que alguém precisava “tapar a boca delas”. Em outras palavras, Hanna e suas companheiras foram acusadas de não produzir um discurso feminista contundente o bastante, sério o bastante, frontal o bastante, assim como aconteceu com Anita Rocha da Silveira naquele debate e em outras críticas que seguiram o lançamento do filme. O que argumento aqui é que, embora não manifeste de maneira literal, o filme reflete, através de suas imagens e discurso fílmico, questões que são fundamentalmente feministas. Sem recorrer a verborragia de diálogos que falam explicitamente sobre o risco de ser mulher, sobre feminicídio ou sobre feminismo, o filme oferece ao espectador códigos que podem ser traduzidos por uma perspectiva ativista que se alinha a valores feministas.
É nesse ponto em que suponho que se localize as principais frustrações com os filmes da constelação queer que analiso nesse artigo: a negação de expressar em palavras seus posicionamentos políticos, ideológicos e ativistas. Sócrates é literalmente sobre um jovem negro passando fome, Aquarius é literalmente sobre um prédio histórico que corre o risco de ser demolido em nome de empreendimentos imobiliários, Bacurau é literalmente sobre um povo guerreiro que luta para sobreviver contra o imperialismo colonial, O clube dos canibais é literalmente sobre uma elite rica que consome a carne dos pobres, Casa de antiguidades é literalmente sobre um homem negro que é vítima de supremacistas brancos. Mate-me por favor, assim como a grande maioria dos filmes queer que se apropriam da ficção especulativa, nunca traz esses temas para a literalidade. Indo pela via oposta, esses filmes complicam, bagunçam, queerizam os temas que abordam.
Durante a maior parte do filme, apenas mulheres são assassinadas pelo assassino em série de Mate-me por favor, até que, em determinado momento, esse padrão é rompido com o cadáver de um homem sendo encontrado. Para um espectador treinado na pedagogia da literalidade, a escolha em colocar vítimas que não são mulheres é um rompimento, um distanciamento da pauta urgente do feminicídio no Brasil. No entanto, a inclusão da morte de um homem pode mobilizar outras questões. Será que existe mais de um assassino, já que essa morte não segue o padrão? Será que, assim como as mulheres, esse homem é de um grupo social que pede para morrer? Poderia a vítima ser um jovem gay? Poderia a vítima ser um jovem gay que procurava naquele espaço a experiência de um sexo público e imoral? Poderia existir alguma similaridade na motivação de seu assassinato com os demais assassinatos de mulheres? O que ele fazia sozinho no terreno baldio? Ao invés de excluir ou negar o debate feminista, esses desvios causados pelo roteiro trazem novas nuances para a discussão, não apenas enriquecendo sua postura feminista, mas complicando (produtivamente) o tema em questão.
De modo geral, esses filmes queer são bastante conscientes dos temas urgentes e necessários tão caros ao cinema político brasileiro contemporâneo. Eles são permeados por questões de gênero, de classe, de raça, de especulação imobiliária, de gentrificação, de ascensão do conservadorismo, de influência da religião evangélica. Todos esses temas estão presentes nessa constelação. A diferença é que, ao invés de aderir a vernáculos estritamente politizados, esses filmes buscam outras alternativas ativistas, através da criação de outros códigos e outras retóricas políticas. Não interessa se Anita Rocha da Silveira conhece o vestido de Kathleen Hanna, o que tornaria a referência um fato literal; o que importa nessa discussão é que ela inseriu no filme diversos códigos que permitem ao espectador traduzir discursivos ativistas, feministas, queer. Mesmo que não seja o vestido usado pela vocalista do Bikini Kill duas décadas antes do filme ser feito, ou o julgamento de Mariana Ferrer, ocorrido meia década depois de seu lançamento, o filme oferece ao espectador um repertório imagético que carrega as possibilidades de leituras que não são literais. Como postulado por Rancière:
O espectador também age, tal como o aluno ou o intelectual. Ele observa, seleciona, compara, interpreta. Relaciona o que vê com muitas outras coisas que viu em outras cenas, em outros tipos de lugares. Compõe seu próprio poema com os elementos do poema que tem diante de si. Participa da performance refazendo-a à sua maneira, furtando-se, por exemplo, à energia vital que esta supostamente deve transmitir para transformá-la em pura imagem e associar e associar essa pura imagem a uma história que leu ou sonhou, viveu ou inventou. Assim, são ao mesmo tempo espectadores distantes e intérpretes ativos do espetáculo que lhes é proposto.34
A noção pedagógica do cinema político, seja em sua vertente otimista ou pessimista, é fundamentada no ideal já descrito anteriormente de conscientizar pessoas que não se alinhavam ao mesmo ativismo proposto pelo filme. No entanto, como argumentei ao longo desse artigo, acredito que, a maioria esmagadora do público desses filmes, são pessoas já alinhadas ao mesmo posicionamento ideológico exibido na tela; pessoas que, como definido por Rancière, já estão predispostas a se engajarem pelo conteúdo do discurso fílmico. Optando por um suposto didatismo na esperança de ensinar ignorantes, esses filmes acabam servindo como um tipo de fan service para espectadores que já fazem parte do fandom do cinema político urgente e necessário. Nesse contexto, a radicalidade do cinema queer é reconhecer a emancipação de seu espectador, oferecendo maior liberdade para que ele traduza e interprete seus sentidos, assumindo o risco, inclusive, de ser traduzido e interpretado apenas em suas superfícies: frívolas, ocas, entediantes, confusas, vazias.
A fundação do binário frívolo/político talvez seja a grande questão para pensar esses filmes. Como já mencionado anteriormente, André Antônio Barbosa defende a improdutividade queer por seu viés despolitizado, gesto que, como também defendi, paradoxalmente constitui um tipo de posicionamento político radical. Ao abordar o filme de Silveira, por exemplo, Barbosa declara que o filme, apesar de receber negativamente a classificação de frívolo, “desvela aspectos de uma discussão estética feminista mais potente do que os filmes que mantêm seus significantes (mesmo que de ‘denúncia’) seguros no funcionamento da ordem simbólica.”35 Sendo assim, o que se torna urgente é a ruptura desse binário, da queda da supremacia do realismo e do didatismo como únicos caminhos possíveis para que um filme seja ativista, e do reconhecimento de que as obras frívolas e ocas, entediantes e estilizadas, plásticas e queer, também carregam potenciais políticos. Tal defesa da frivolidade também não é recente. Ainda na década de 1980, o antropólogo bicha Néstor Perlongher, que também era poeta, já denunciava as limitações desse binário e intervia em nome da frivolidade:
Aborrece-me que os efeitos da frivolidade (superfície lavrada, têxtil do brilho: simulacro de banlons e corpetes) sejam lidos, significativamente, em detrimento de uma suposta “profundidade” (que não é, diria Foucault, senão uma dobra da superfície que se estira). E, nesse mesmo rumo, que se infira ou que se suspeite, arguciosamente, de um “torremarfinismo” nessa procura de iridescências velozes que deem, indecisas e ébrias, uma forma (precária, provisória) ao êxtase dionisíaco ou ao desequilíbrio batailleano. Penso que a poesia experimenta um “plano de expressão”, cuja “harmonia” se deve colocar, por assim dizer, a serviço das convulsões intempestivas, das microtragédias do desejo, sem pretender “significá-las” mas, no máximo, traçar, na dor (gozosa) da “extração da pedra da loucura”, leves linhas de fuga que intensifiquem – que façam resplandecer em seu reverberar – os estremecimentos da alma, as derivas (monacais?) da paixão, os arroubos ou, mesmo, a fixidez. A contraposição (ou sujeição, conforme o caso) à chamada “poesia social” me aborrece muito, pois traz implícita toda uma redução, alvenaria acartonada, a certa formalidade legalista, que concede apenas leitos asfaltados ao remoinho dos afetos. E aborrece-me que se considere esse trabalho fronteiriço (“contra” ou de costas para o sentido) um “ludismo” que rima com “idiotismo”.36
Apesar do fracasso em serem reconhecidas como obras políticas, as constelações queer demonstram seu ativismo justamente por construir as leves linhas de fugas descritas por Perlongher. Esses filmes não são menos profundos do que aqueles consensualmente entendidos como filmes políticos. Através do uso frívolo que faz da ficção especulativa, o cinema queer brasileiro contemporâneo resplandece e reverbera suas imagens de desejo, gozo, prazer, perversão, deboche e celebração. Como resume Barbosa, essas constelações “parecem ter o poder corrosivo de desconcertar tanto aqueles que, de forma conservadora, querem manter a ordem, quanto aqueles que, de forma utópica, querem modificá-la para melhor.”37 Tal qual as fabulações de Haraway a propor que nós fiquemos com o problema,38 essas constelações fílmicas brilham anseios de viver e viver melhor no presente. E, embora suas luzes sejam frágeis e passageiras, elas podem deixar rastros e guiar para um futuro mais rico; um futuro no qual frivolidade e política se encontram em um horizonte de possibilidades especulativas. Um futuro que não é (re)produtivo, mas imaturo em seu modo de imaginar potenciais inesperados.
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1 De Sousa Causo, Ficção científica, fantasia horror.
2 Souto, “Constelações fílmicas”.
3 Souto, “Constelações fílmicas”, 156.
4 Ibid., 157.
5 Prysthon, “Furiosas frivolidades”.
6 Barbosa, “As constelações da frivolidade”.
7 Guimarães, “Alegorias do nada.”
8 Ibid.
9 Gomes, Cinema e política, 107.
10 Rancière, O espectador emancipado.
11 Ibid., 84-85.
12 Jenkins, entrevista.
13 Rancière, O espectador emancipado, 100.
14 Xavier, “Cinema político gêneros tradicionais.”
15 Guimarães, “Alegorias do nada.”
16 Dyer, Only entertainment, 20.
17 Tradução do autor, para essa e para as demais citações de textos em inglês realizadas ao longo do artigo.
18 Beaty, “Superhero fan service”, 322.
19 Andrade, “Bacurau.”
20 Xavier, “Cinema político gêneros tradicionais.”
21 Andrade, “Bacurau.”
22 Beaty, “Superhero fan service”, 324.
23 Jenkins, entrevista.
24 Andrade, “Bacurau.”
25 Barbosa, “As constelações da frivolidade”, 112.
26 Haraway, Staying with the Trouble.
27 Haraway, Staying with the Trouble, 150.
28 De Lauretis, “Queer texts, bad habits.”
29 Ibid., 244.
30 Guimarães, “Alegorias do nada.”
31 Halberstam, Arte queer do fracasso, 24.
32 Ibid., 144.
33 Stoeffel, “Kathleen Hanna Wants Dress”.
34 Rancière, O espectador emancipado, 17.
35 Barbosa, “As constelações da frivolidade”, 132.
36 Perlongher, Evita vive outras prosas, 95-96.
37 Barbosa, “As constelações da frivolidade”, 107.
38 Haraway, Staying with the Trouble.
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